Atos, fatos e boatos dificilmente têm coerência entre si. De um ato rotineiro sem maiores implicações, novos fatos podem surgir. As notícias desse fato, de conteúdo e natureza diversos da atitude, habitam o imaginário popular e geralmente são estórias inconsistentes. Quando um fato derradeiro e preponderante aparece, colabora para a compreensão do conjunto.
Numa cidade pequena do interior, falecimento de político é parecido com uma missa. Reúnem-se os fiéis, preocupados com a roupa de seus pares e obcecados pela imagem alheia. A eles juntam-se os infiéis, devotados contribuintes das obras sociais. Dividem, cada um a seu tempo e a seu modo, a atenção e os préstimos dos demais. O culto à pessoa do político supera aspectos ideológicos ou partidários.
O fato tem valor por seus aspectos externos, de acordo com a importância que lhe atribuem. O óbito era um acontecimento relevante para a comunidade. Esqueceram-se das mazelas da administração pública, da escassez de alimentos e de moradias... As necessidades rondavam as portas e as almas de todos. Todavia, a atenção voltava-se totalmente ao finado e aos assuntos do passamento. Pelas condições em que se dera, confirmava boatos pregressos e gerava novos.
As pessoas chegavam aos poucos e dispunham-se em pequenos grupos, à frente e aos lados, dentro e fora da casa. Rodinhas de conversa com assuntos fragmentados. Alguns falatórios em sussurros e outros exaltados, conforme o rumo da prosa. Uma turma eloqüente, mas de falas baixas, ao pé do ouvido. Uns tomados pela dor e outros pela decepção; ele partira cedo do convívio, deixando saudades e incumbências.
Numa ocasião como essa, até mesmo os desafetos parecem condoer-se; porém dizem intimamente: “já foi tarde!”. De certa forma, estes sentiam um pouco de formol junto a seus narizes. O defunto tinha um rosto rosa arroxeado, com algodão lhe tapando narinas, ouvidos e boca. A morbidez nua e crua impressionava a todos. Para os contrários, aquela figura em decomposição tornava o ambiente um tanto desconfortável. Surgia neles o desejo de ir embora: “Acabe-se logo, tudo isso cansa”.
Noutro lado, os cheiros das flores em coroas e de incenso invadiam a alma de seus partidários. A gratidão levava-os à tristeza, face à constatação. Prostrados pela desgraça, exprimiam seus pesares: era um homem de bem... Tanto ajudou a cidade... A gente perde muito sem ele...
Morte súbita, num infarto fulminante; a fatalidade dera-se em seu gabinete, quando estava num ato com a secretária. Seria apenas mais um encontro amoroso, não houvesse o infarto. Vozes anônimas revelavam a “causa mortis”, atestando o óbito ao popular: — Morrer, para quem fica, é triste. Mas, que morte bonita ainda assim! Bem dizem que não se deve fazer amor logo após o jantar. Deu-lhe congestão!
Impassível, como é de se esperar, no centro da sala o “de cujos” parece a tudo assistir – e ser assistido. Podemos dizer que estava tranqüilo, certo de que nada comentado mudará sua condição. E temos o fato: é morto. Não há nada que mude isto. Morto. Sim, “mortíssimo”!
A secretária participava da cerimônia. Como amante, quase desaparecia dentro de si mesma, tamanha era a vergonha. Mas lá estava, exercendo seus direitos de segunda viúva e de secretária do prefeito falecido. Com o amor e dedicação que desempenhou suas funções – particulares e profissionais – sentiu-se quase dona daquele homem.
Por um longo tempo, ela resistiu às investidas. Tinha corpo opulento, boas maneiras, fala agradável e sorriso cativante. Contudo era vaidosa e sentia-se imposta a um castigo: julgava não ter simetria, nádegas grandes para seios pequenos. Como ocorre com muitas mulheres, a chegada aos trinta anos somou-lhe insegurança. O momento em sua vida foi um divisor de águas. Pensou no avanço dos anos, na infelicidade do casamento que vivia, no marido que pouco amor lhe tinha, na ausência de filhos...
Acabou por ceder. E gostar. Tudo foi tomando forma. Para estar inteiramente à disposição – de quem acreditou ser o grande amor de sua vida – pôs fim ao casamento. Entregou-se ao amante com toda a devoção. No coração dele, pensou ser a primeira, a titular.
Houve um momento em que estava a sós com o morto; deixou-lhe então uma mensagem no bolso: “Meu eterno amor: Não é apenas tu quem falece. Meus sentimentos também morrem. Uma grande parte minha vai contigo: meu coração e nossos sonhos. Sei que era um homem forte e não deseja que eu fique triste, mas esta dor é intensa e estou em lágrimas...O que mais posso fazer além de chorar, no funeral do meu grande amado? Sua Judite.”
Entre os dizeres do povo, se há um preferido, é esse seu envolvimento amoroso. Por onde ela estava, os cochichos se multiplicavam. Arranjavam-lhe até mesmo uma concorrente:
— Não chore muito, pois não era a única além da titular.
— Fulana, não sabe que o Prefeito também saía com a Ciclana? Dizem que era o seu novo grande amor!
Comentários feitos aqui e ali, às escondidas, transpareciam nos olhares que lhe dirigiam. Escutou alguns trechos, palavras soltas, o suficiente para confirmar que era ela o foco da conversa. O tom e o teor a entristeciam, conduzindo-a para um pouco além da tristeza, lá onde se desanima e se deprime.
Não sabemos ao certo quando se iniciou o hábito de maquiar defuntos. Contudo, mãos talentosas e cremes lhe prepararam uma bela face.
Olhos cerrados, barba bem aparada e trajado para o cerimonial. Tudo compunha um aspecto formal, comum à maioria dos defuntos. Diante de tanta pompa e circunstância, ele parecia vestido para o plenário.
A formalidade por vezes disfarça fraquezas. Em razão de sua aparência, surgiam dúvidas na opinião pública, até agora consensual, de que não era um homem íntegro. Um meio-sorriso se anunciava, esboçado pela boca cheia de algodão. Os lábios demonstravam um misto de ironia, cinismo e contentamento. Corria por entre as pessoas o parecer: — Aquilo mostra o quanto deve ser bom, muito bom, morrer com a sensação de prazer!
Noutro canto da sala, um rapazote acompanhava os últimos momentos do falecido chefe. Ajudante de ordens e fiel guarda-costas, achava-se na obrigação de estar próximo. Passou a noite em claro e incumbiu-se de todos os preparativos. A cena em que encontrara o patrão falecido, nos braços da amante, não lhe saía da memória.
Costumeiramente José fazia serão. Era o início da noite e o fim do seu expediente. Preparando-se para ir embora, dirigira-se ao gabinete do Prefeito para despedir-se. Ocupado ou em reunião com a secretária, o patrão trancaria a porta. Estava entreaberta e por ela José entrou. O choro silencioso da amante enviuvada enchia a sala. Encontrara-o sem vida sobre o sofá. Jamais vira alguém tão próximo morrer. Um grande impacto nos afeta as sensações. Foi nisso que começara a ouvir ordens do além. Para ele, a voz era “viva”! Existindo o comando, surgiu a instrução. Escutara nitidamente:
— José, vá a minha casa e comunique. Aqui não quero ficar! Providencie o que for necessário.
Ouvira e obedecera. No entanto, julgara que esta difícil missão, a de comunicar a família, poderia ser de outro. Mas o chefe assim determinara. Acostumara-se a obedecer cegamente, seguindo todas as instruções sem pestanejar. Não colocaria em dúvida a autoridade do chefe. Nunca! Nem mesmo agora com ele morto.
No entanto, José questiona-se por muitas vezes: “Será que não foi apenas minha imaginação?”. A título de certificar-se do próprio juízo, foi até o caixão. Em alguns momentos, vemos e revemos, tentando afastar uma alucinação. Como num choro pelo leite derramado, pelo cheque devolvido e outras situações irreversíveis, lançamos o olhar para aumentar a agonia. Aproximou-se do finado. Os olhos defuntos teimavam em se abrir. Assim permaneciam até que alguém mais corajoso os fechasse. Mas os olhos estavam abertos! Observou-os fixamente, por instantes que julgou horas. Pareciam-se com olhos de peixe, como se não tivessem pálpebras. O olhar exigente e autoritário estava ali presente.
Aterrorizado, voltou à cadeira, permanecendo atônito e imóvel. Pouco depois, ouviu novamente a viva voz do falecido:
— José, observei em várias ocasiões o desejo com que olha a Judite. Sei que ela sempre me foi fiel e você também. Mas, deve agora iniciar uma aproximação consolando-a. Assim, com o tempo poderá seduzi-la. Vá e cumpra minha ordem.
Algo remetia o rapaz a um sentimento duvidoso. Nos últimos cinco anos, fora servidor esforçado. Jamais deixara de cumprir tarefas. Mas finado o chefe, ainda deveria cumpri-las? Apesar de que só a ele o morto falava, alguém observou:
— O coitado parou de sorrir!
José teve certeza de que o patrão falava sério. Ponderava: “Eu o escuto, tudo bem. O infeliz já morreu, está aí a feder. Ainda assim, toma-me a atenção. Eu até que olhava a Judite. É claro, com aquele traseiro! Mas, consolar para seduzi-la! Ora bolas... Tenho meus princípios e sou casado! Vou deixar tudo como está. O que ele poderá fazer? Se os olhos abrirem-se novamente, alguém os fechará. Se deixa de sorrir, não é problema meu. Donde está, vai para o buraco. Posso ficar tranqüilo.”
Entre cafés e bolachas, circulavam chacotas sobre o pobre:
— Um cavalo adestrado fica bem num conjunto, todo encilhado e montado. Se lhe tirarem o cavaleiro e os arreios, ficará meio perdido e sem saber o que fazer. O pau-mandado está agora desencilhado. Olhem sua cara triste e desesperada!
— Acho que este puxa-saco está querendo herdar a Judite! Observe: seu olhar vai do chefe ao traseiro dela, repetidamente. Do jeito que sua frio, está com um baita medo dela!
A autonomia do morto, apenas relativa, induziu José à descoberta de que também poderia mandar, ao menos em sua própria consciência. Não lhe prestou maior atenção. Guardou consigo o constrangimento de desobedecer a uma ordem.
Temos nossas preferências dispostas em hierarquia. Para o distinto falecido, não havia satisfação superior que mandar. Exercia a autoridade com enorme prazer. Dentre as pessoas corrompidas pelo poder, era ele um expoente. Conforme declarações a seus amigos próximos, tinha um senso peculiar de justiça, expresso neste seu pensamento:
— A natureza da justiça é o exercício da Lei pelo Estado, em benefício de sua própria manutenção, atendendo aos interesses do governante. Considero que justo será o que me favorecer. De nada adiantaria chegar até aqui, se não pudesse me beneficiar.
Parecia-lhe custoso ver uma ordem descumprida. Que afronta! Logo o pupilo a quem educara e em quem tanta confiança depositara. Apesar de contrariado pela desobediência de José, sentia-se um homem realizado. Continuava, de certa forma, a mandar. Tinha razão, pois o defunto geralmente é a atração principal num funeral, como num comício é o candidato.
Encontrara na política o melhor meio para manusear a “Coisa Pública” em benefício próprio, dos parentes e amigos. Demonstrara habilidade, entendendo o funcionamento e colocando em prática a máxima da politicagem e autoritarismo:
— Para os amigos, as benesses da Lei; aos inimigos, os seus rigores.
A doença cardíaca já o acompanhava havia anos, possibilitando-lhe a preparação: a seu modo amava as pessoas e as coisas das pessoas. Depositava enorme confiança em seus seguidores mais próximos, deixando-lhes até mesmo bens em testamento. Os herdeiros e sucessores, regulares ou não, sabiam cada qual a sua tarefa – e do que deveriam cuidar após a sua morte. Seus negócios espalhavam-se por toda a cidade, em nome de muitos parentes e amigos.
Somando os fatos e essas circunstâncias, o defunto via-se refletido em diversos semelhantes. Considerando o vice-prefeito, observou: “Naquele rosto aparentando tristeza, noto ao fundo a ansiedade e alegria contida em logo assumir o cargo que me pertenceu”. E realmente, pelas mãos do sucessor, repetir-se-iam os mandos e desmandos. O filho enlutado, recém-formado advogado, em breve assumiria o espólio político. Deduzia que o rapaz tinha jeito, herdaria boa parte de suas coisas e os ideais de vida.
Enxergou então, no sentimento dos presentes, legítimos sucessores. Assim continuaria vivo no comportamento das pessoas. Seus discursos, filosofia e atitudes, ficariam em suas memórias. Grandes personalidades criam seus seguidores.
Resolveu então descansar em paz. Nem ao menos precisaria se fazer ouvir outra vez. Neste momento, desejou que sua última ordem a todos atingisse. Externou este sentimento, numa prece derradeira e silenciosa, evocada de sua alma e falada com o coração:
“Em meu histórico de homem público, fui prefeito por três vezes, conciliando o progresso desta cidade com meus interesses. Confesso, entretanto, que nem sempre fui honesto: a sociedade me comprou, e me deixei vender. Tudo tem o seu preço. Mas a cidade progrediu. Vejam quantos postes de luz coloquei! Hoje servem às crianças merenda nas escolas, mesmo que seja a um custo exorbitante. Asfaltei várias ruas e mandei construir pontes. Não é apenas a minha comissão que se acresce ao valor. Temos todo um conjunto de pessoas a ganhar e fui apenas uma peça destes esquemas de corrupção. Fiz pelos meus interesses e pelo povo. Tudo que me veio às mãos, apliquei em negócios e criei empregos. Ora vejam como sou desprendido: só me restou este caixão... Ao menos eu mandei na cidade, exerci o poder! Só aconteceu na administração o que eu determinei. Agora que me vou, compartilho esta vida que se finda com as pessoas que me seguem. Deste grande homem realizador que fui, absorvam os aspectos. Acresçam meus sentimentos aos seus, sintam a vida como eu a senti. Meus ideais permanecerão a influenciar, contando com o apoio costumeiro e o conformismo do povo em geral. Minha obra será continuada por várias gerações!”
Realizara enfim seu último discurso. Servira-se das consciências presentes, tornando-as platéia silenciosa. As palavras calaram fundo junto aos seguidores, que somaram ao seu caráter os vícios e virtudes do mentor. Aplausos e vaias viriam mais tarde, pelas atitudes geradas na continuidade de seus propósitos.
Dessa vez o falecido fecha os olhos por sua iniciativa, voltando a ter o meio-sorriso de algodão. Alguns tiveram um ligeiro arrepio percorrendo seus corpos...
Ouviu-se uma exclamação, com o humor oscilando entre assustado e irônico:
— A morte passou por perto!
Seguiu-se o funeral. Num crematório, logo transformaram o defunto em cinzas. De seu legado, restaram idéias vivas em corações mortos pelas próprias escolhas. Inúmeras almas seguem o falecido, confinadas à escuridão da obra que julgou imortal.
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Parabéns amigo!Realmente senti-me como se estivesse no próprio funeral do prefeito. Leitura gostosa de expressão encantadora. Sabes usar as palavras dando ao leitor o poder da imaginação e aquele ar de "comédia-política" tão bem trabalhado. Um abraço.
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