Darcy ressonava enquanto passos suaves avançavam por sua casa. Pela janela entreaberta, um ligeiro vento frio balançava a cortina. Remexia-se no travesso, acompanhando com seu corpo as sensações de um pesadelo que repetia-se em sua mente há muitas noites, tal como uma perseguição. Ao seu lado, na cama em que dormia, um livro aberto e largado descuidadamente ao seu lado lembrava-nos que adormeceu enquanto lia; de tal sorte, lhe caiu ao colo quem lhe fez companhia no início da noite.
A discussão que teve mais cedo – motivo pelo qual dormiu tão somente com o livro – tornou o seu sono estranho; resolveu, logo que surgiram palavrões aos seus ouvidos, não vencer àquela disputa pelas palavras e usou da opção de retirar-se em pronto da sala. Assim, lhe pareceu que deixar Nadir sem a oposição usual seria uma opção óbvia e salutar.
Um forte ruído de louça caindo ao chão, vindo da cozinha, lhe trouxe a um abrupto acordar; levantou-se em sobressalto. A seguir, um som parecido com os de cacos de pratos e de copos ao serem pisados tomava sua curiosidade. Com sono e temor, calçou-se rapidamente com as chinelas e decidiu averiguar o que passava-se na cozinha; logo que chegou ao corredor que havia defronte ao seu quarto, acendeu a lâmpada e jogou sobre aquele local um pouco de luz; em seguida, tudo escureceu aos olhos de Darcy.
Zezé vinha pela rua cantarolando repetidamente algumas palavras que lembravam, em parte, os versos de uma canção que ouviu no boteco de onde saíra...
— Por isso vou lá... ai,ai. Falá do meu amor, ai ai... Tá esperando na janela ai;
A bebedeira lhe deixou zonzo e, a passos trôpegos, agora caminha pela calçada; apoiando-se num poste, tentou equilibrar-se. Alguns segundos depois, instintivamente, o corpo lhe pedia que sentasse junto ao meio fio. Seus pensamentos, porém, lembravam-lhe que era tarde; precisava ir para casa. Por fim, os efeitos do álcool tomavam-lhe e ali mesmo sentou-se; olhou para cima e viu um belo luar, apesar de estranhar que haviam duas luas na sua embaçada visão. Ou seria apenas uma? Numa primeira olhada, duas era o que via; como lhe pareceu esquisita tal imagem, olhou novamente. Fixando a visão, encontrou apenas uma...
— Juro que vi duas luas!
Ali sozinho, falava para sabe-se-lá-quem ouvir. Estranho é o diálogo daqueles que falam sem que haja claramente um ouvinte; em todo caso, respondeu a si mesmo;
— Vai ver que uma é mais tímida que a outra...
Ao baixar a visão, deteve mais atenção no conhecido sobrado que havia do outro lado da rua. Um som alto do quebrar de louças chegou aos seus ouvidos e ecoou pela rua. Por uma janela entreaberta que havia na parte de cima da casa, viu alguém levantar-se. Logo após, uma ténue luz lhe chegava aos olhos, saída do interior da casa. Um estampido seco sucedeu-se a outro e a outro, todos acompanhados de forte clarão dentro do sobrado. Após isso, escutou um barulho seco de algo caindo ao chão assoalhado, seguido de outro ainda mais forte, ao tempo que a silhueta que há pouco vira desapareceu em queda, saindo da ambígua visão de Zezé.
Narrando para o leitor é fácil dizer o que aconteceu; porém, na turva visão de Zezé, algo lhe parecia estranho e não lhe era fácil entender o que viu. "O que será que aconteceu?" Esse era mais ou menos o pensamento de Zezé. Fato era que suas ideias estavam desorganizadas, totalmente tomadas pelo álcool.
Nadir dormia sobre o sofá, sentindo incómodo em razão do frio da madrugada que atravessava a casa. A televisão ainda ligada mostrava cenas de um filme que não lhe fazia o menor sentido, ao misturar-se com os sonhos que trafegavam pela sua mente.
"A janela do quarto deve estar aberta de novo... Se a porta também estiver, toda essa casa fica gelada! Vou fechar aquela janela e a porta que chega no corredor; posso aproveitar também para pegar uma coberta. Hoje será melhor dormir só do que em má companhia." Assim pensava, ao resignar-se a dormir no sofá, enquanto esforçava-se para entender algo do filme que a outrora abandonada televisão insitia em lhe mostrar.
Pouco depois, escutou vindo de fora uma voz aparentemente familiar; tal fala repetia-se em alguns versos, sem muito ritmo e melodia, visivelmente afetada por uma possível bebedeira. Fortes ruídos vindos da cozinha e do corredor chamaram-lhe a atenção; "Será Darcy em algum desastre noturno? Só me falta isso!", perguntava-se, ao ouvir pesados passos que fizeram ranger o assoalho de madeira do velho sobrado. Ouviu barulho suficiente para o medo lhe entrar pela alma; concluiu que tinham alguma indesejada visita em casa. Lembrou-se de uma arma guardada num fundo falso da gaveta da estante da sala. Rapidamente pegou a arma; empunhando-a, rumou escada acima.
Nas mãos de Nadir a arma pesava muito mais do que seu peso real. Tal arma, automática, lhe foi havida por herança do pai e jamais a utilizara de fato. Apenas a deixou ficar naquele fundo falso em que o pai a escondia, temendo complicações com a polícia. Periodicamente a arma recebia alguns precários cuidados. Ainda assim, Nadir considerava a arma pronta para algum possível uso. Porém, eram passados 10 anos de guardada quando agora a arma era chamada para agir.
Chris estava caminhando pela rua, com o corpo curvado; sentia-se como se o vento gelado lhe atravessasse o corpo. Saiu de casa sem um agasalho e avançou pela noite sem aperceber-se das horas. Quando precisou retornar para casa, já com a madrugada por metade, é que deparou-se com o intenso frio. "Maldita previsão do tempo! Esses caras tanto estudam e só dizem bobagens... Como puderam afirmar que hoje seria uma noite quente?". Sentindo-se traído pelo noticiário, deixava o aborrecimento tomar-lhe os pensamentos e acentuava em seu coração o desconforto, para além daquele que sentia provindo do frio. Cabisbaixo que andava, somente notou que haviam luzes de viaturas policiais quando chegou defronte ao sobrado, já próximo do portão, onde uma faixa proibia aos curiosos de aproximarem-se. Parou junto às poucas pessoas que acompanhavam atentas o trabalho de remoção dos corpos.
Algumas lágrimas desceram-lhe pelo rosto. Poucas vezes chorou em sua vida; porém, esse momento lhe despertou uma tristeza profunda. Um rosto familiar aproximou-se e, entre um olhar perguntador e um braço que lhe pousou no ombro, disse-lhe:
— Não (ich!)me deixaram entrar... Mas, eu vi alguma coisa (ich)... de onde estava... no outro lado da rua... (ich!) Mas eu to num porre (ich!) tão grande que não consigo (ich!) lembrar-me com exatidão... (ich!) - Dizia Zezé, entremeando palavras ao soluços que despontavam de si, enquanto esforçava-se para manter-se de pé. A sua vista estava turva e o soluçar lhe atrapalhava a fala.
Enquanto observava aos corpos serem retirados do sobrado, na mente de Chris as lembranças da discussão que tiveram ao final da tarde de ontem enchia o seu coração de arrependimento.
Naquele dia, Chris, Nadir, Zezé e Darcy estiveram na sala do sobrado conversando, como era o hábito daqueles dois casais ao finais das tardes. Porém, o vício pela bebida que Zezé mantinha deixava a todos muito aborrecidos. Durante a discussão, ao sair em defesa de Zezé, Darcy obteve em troco a ira de Nadir; acabaram por interromper ali a guerra verbal, após muitos palavrões. Por fim, enquanto Nadir subia para ler no quarto do casal, Darcy ligou a televisão; Zezé procurou por um bar próximo e Chris decidiu assistir a quantas exibições pudesse numa sala de cinema próxima. De tal sorte, todos sairam do sobrado zangados em razão das acolaradas disputas, sem que lhes ocorressem “levantar a bandeira branca”, sinalizando por um entendimento qualquer que fosse.
Nadir firmou o indicador no gatilho, após destravar a arma com o dedo polegar. Ao subir a escada, um corpo pulava em seu ataque e, ao tentar proteger-se, atirou no vulto; Assim, a velha capsula que há anos esperava ser acionada recebia o impacto em sua espuleta; o primeiro tiro teve Nadir como alvo, em reverso, e fixou-se em sua testa ao sair pela culatra da arma. O impacto do projétil deslocou o seu corpo para trás; com o seu dedo rijo no gatilho, a arma disparou por mais duas vezes; um tiro atravessou o assoalho e atingiu mortalmente, no corredor do andar de cima, Darcy. O outro acertou, em cheio, a um gato que em suas estripulias invadiu ao sobrado naquela madrugada e que, após ter derrubado louças e pratos pela cozinha, correu assustado remexendo os cacos pelo chão. Após, avançou pela casa e pulou sobre um aparador que havia no corredor acima da escada. O pobre gato, enfim, ao chegar ao aparador fez um vaso despedaçar-se ao chão.
Com a mão no ombro de Zezé, Chris disse-lhe, em meio a uma profunda amargura:
— Ao despedir-se de alguém, seja quem for, é preciso ser cordial. Sabe porquê? Porque nunca saberemos, com exatidão, se ao menos uma vez mais iremos falar com aquela pessoa...
Pelo portão do sobrado, dois corpos cobertos por lençóis brancos passavam sobre macas, seguindo em direção ao rabecão.
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